"A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas." (Johan Wolfgang Von Goethe)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Timidez



Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

— mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

— palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

— e um dia me acabarei.


Cecília Meireles
De 'Viagem'

"O que me dói não é..."

 
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

Fernando Pessoa
5-9-1933

Como é por dentro outra pessoa ...


Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

Fernando Pessoa
in "Poesias Inéditas"
1934

Distância


QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve sêco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...

Cecília Meireles
in 'Viagem'

Tumulto



Tempestade. O desgrenhamento
Das ramagens ... O choro vão
Da água triste, do longo vento,
Vem morrer-me no coração.

A água triste cai como um sonho,
Sonho velho que se esqueceu ...
(quando virás, ó meu tristonho
Poeta, ó doce troveiro meu! ...)
.....................................................
E minha alma, sem luz nem tenda,
Passa errante, na noite má,
À procura de quem me entenda
E de quem me consolará ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas (1923)

Improviso à janela


Este é o começo do dia,
como o começo e o fim do mundo:
as nuvens aprendem a voar,
os campos vão sonhando nuvens,
o vento vai sonhando o pó
onde tristemente o amor palpitará.


Este é o começo do dia.
Vemos tudo o que já foi visto,
alguma coisa não mais se verá.


Nem sempre olhamos o dia
tão face a face e tão docemente.
Nem sempre sentimos esta saudade,
ainda ausente, ainda futura,
do que há e do que não há.


Este é o começo do dia:
- do céu, da luz, da terra, dos homens,
que acontecerá?

1954

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Para mim mesma



Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem belezas mansas de brumas,
Que na penumbra se evaporarem...


Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem doçuras de auras e plumas...


E as noites mudas de desencanto
Se constelarem, se iluminarem
Com os astros mortos que vêm no pranto...


As noites mudas de desencanto...
Para os meus olhos, quando chorarem...


Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem divinas solicitudes
Pelos que mais os sacrificarem...


Para os meus olhos, quando chorarem,
Verterem flores sobre os paludes...


Para que os olhos dos pecadores
Que os humilharem, que os maltratarem,
Tenham carinhos consoladores.


Se, em qualquer noite de ânsias e dores,
Os olhos tristes dos pecadores
Para os meus olhos se levantarem...



Cecília Meireles
In: Baladas para El-Rei (1925)

"Amigo"


Amigo, leva o que quiseres,
penetra teu olhar nos recantos,
e se assim o desejas, te dou minha alma inteira,
com suas brancas avenidas e suas canções.
Amigo, com a tarde faz que se vá
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe em meu cântaro se tens sede.
Amigo, com a tarde faz que se vá
este desejo meu de que toda a roseira me pertença.
Amigo, se tens fome come de meu pão.

Tudo, meu amigo, fiz para ti, Tudo isto
que sem ver verás em minha estância nua:
tudo isto que se eleva pelos muros direitos
- como meu coração - sempre buscando altura.

Sorris, amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se leva por dentro,
mas eu te dou minha alma, ânfora de méis suaves,
e tudo te dou... Menos aquela recordação...
...Que em minha fazenda vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...


Pablo Neruda

As aquarelas


Não penso azul, nem verde, nem vermelho,
nenhuma cor vejo isoladamente:
quero a vida total, como um espelho
a que não falte flor, folha ou semente.

A natureza, neste abril redondo,
esconde formas, seres, linhas, cores,
aqui e ali bizarramente pondo
manchas involuntárias, multicores.

Recuso-me a adotar bandeira ou marca.
Nada escolho. O mistério natural
me envolve inteiro. Em tuas aquarelas

tudo renasce — como quem da barca
do dilúvio, depois do temporal,
visse de novo a terra das janelas...


Odylo Costa Filho
In:"Boca da noite"

Nada sei

Nada sei da sedução da morte nos olhos
dos pássaros atingidos pelo trilho dos incêndios
no interior das searas.
Não sei que nome dar ao momento
exacto em que a luz pode ferir
a obscuridade da lua nova
dispersando as aves nocturnas.
Ignoro quais as palavras propícias
à vertigem das nuvens, em novembro,
quando as águas dos temporais
alagam os meus olhos.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

Canção de Outono



Os longos sons
dos violões,
pelo outono,
me enchem de dor
e de um langor
de abandono.

E choro, quando
ouço, ofegando,
bater a hora,
lembrando os dias,
e as alegrias
e ais de outrora.

E vou-me ao vento
que, num tormento,
me transporta
de cá pra lá,
como faz à
folha morta.


Paul Verlaine
Tradução: Onestaldo de Pennafort